I’m Feeling | Para mim sempre foste a Isabella

No outro dia quando fui ver o filme “A Rapariga Dinamarquesa”, fiquei com o estômago embrulhado e não foi só por causa da história em si.

Primeiro quero agradecer à Isabella, por me deixar partilhar a história dela.

Há uns atrás conheci a Isabella através de um amigo em comum.

Na altura lembro-me que o meu amigo disse-me que tinha uma amiga que precisava de amor e força.

“Então marca lá um cafezinho com ela!”

Quando eles chegaram, confesso que nem percebi logo o assunto.

A Isabella ainda estava longe de ser o mulherão em que se tornou.

Andava em consultas, a tomar muitos químicos, era uma pessoa triste e cabisbaixa.

A Isabella tinha nascido num corpo errado, a natureza não é perfeita e também comete erros.

Parece simples não é?

Para mim é! Sempre lhe chamei de Isabella mesmo quando ainda tinha barba.

As pessoas olhavam… achavam estranho.

Mas a verdade é que para mim, ela sempre foi a Isabella (na verdade, nem me lembro o nome que foi baptizada).

Mas por trás daquela cara de tristeza profunda, havia uma história que nem imaginei possível em filmes.

Chegou o dia que a Isabella ganhou coragem e decidiu partilhar com os pais, tudo aquilo que pensava há muitos anos.

Tinha 2 anos de consultas de psicologia e psicanálise e achou que seria aquele o momento.

Tinha boa relação com os pais e sentiu que não os podia continuar a enganar.

A mãe sempre percebeu.

Sempre soube.

As mães sabem sempre.

O pai, homem de uma fé inabalável, seguidor obcecado da igreja católica nunca percebeu.

Mas na verdade a conversa foi o pior cenário possível.

Lembro-me da primeira vez que a Isabella me contou isso e usou esta frase que nunca esqueci:

Parece que matei o pai que tive durante 17 anos e fiz nascer um monstro cheio de raiva.”

Não correu bem.

Foi chamada de monstro. De diabo.

Que devia morrer.

Nessa noite já não dormiu em casa. Aliás, esse foi o último dia que pisou aquela casa.

Se é fácil? Calculo que não.

Se era suposto haver uma festa e confettis? Não, óbvio que não.

Sendo num meio pequeno ainda piora? Sim, com certeza.

Foi expulsa de casa com o pouco que conseguiu levar.

A mãe tentou intervir e ainda levou uma carga de porrada.

(sinto-me tão aflita a escrever isto, só de imaginar…)

Isto passou-se em Dezembro, numa zona do país (que não interessa qual) muito fria e depois de jantar, com noite cerrada.

Não vou contar pormenores do quão difíceis foram os dias seguintes…

Uns tempos mais tarde, conseguiu ir para Lisboa e retomar as consultas.

Mas o processo encalhou e foi dado como dúvida, por ter deixado de ir às consultas.

Mesmo explicando o motivo para o qual teria faltado…

E era preciso começar do zero.

Mais dois anos em psicologia… mais isto… mais aquilo…

Conheci-a nessa altura!

E ainda bem que conheci, porque nunca tinha tido o privilégio de falar abertamente com alguém cuja natureza tivesse dado um tiro tão ao lado.

Tivemos uma química imediata porque eu nunca a julguei.

Sempre a aceitei. Não tinha como ser de outra maneira.

Mas confesso que durante alguns dias, tentei colocar-me nos “sapatos” dela e pensar como será ser refém de um corpo que não nos pertence?

Como será sentir que não se quer o tal vestido?

Ou que se quer usar saltos altos?

Ou andar sempre escondido?

Ou sofrer de bullying e preconceito?

Ou ainda, perder a família por isso?

O que passa pela nossa cabeça?

Que murro no estômago…

E agora as boas notícias…

Hoje (já passaram alguns anos) a Isabella é um mulherão feliz e realizada!

Já concluiu as operações.

Mora em Londres e não podia estar mais feliz.

O único “problema” que tem na vida é o facto de o pai ter dito que ela tinha morrido. Andou de preto a fazer o luto e tudo.

Enfim… cada um reage como acha melhor.

Mas naquela dia, aquela família acabou.

A Isabella nunca mais viu os pais, e provavelmente não os voltará a ver.

Eu sinto que ela no fundo, sente muito a falta deles.

Continua a ser católica porque apesar da natureza ter sido imperfeita, diz que Deus lhe deu forças para lutar para ser perfeita.

Já eu, com todo o respeito que tenho por esse senhor, digo-lhe apenas que como homem cristão que é, devia reger-se pelo amor.

Pedi à Isabella se podia escrever este “I’m Feeling Trans” e ela pediu-me para escrever o seguinte:

 

Ser transexual não é ser nenhum monstro.

Ser transexual não é igual a ser uma aberração.

Ser transexual não é sinónimo de estar doente.

Ser transexual não é estar tonto.

Ou estar a querer chamar a atenção.

Ser transexual não quer dizer que os outros sejam superiores.

E que fique nas mãos de quem queira humilhar.

Ser transexual não é ser inútil.

Tenho uma carreira de sucesso na Inglaterra.

Nem todos os transexuais são travestis (com todo o respeito).

Assim como nem todas as pessoas que nasceram no corpo “certo” são padeiros.

Falo 8 línguas correctamente.

Sou respeitada pelo meu trabalho.

Sei cozinhar.

Leio em média 1 livro por semana.

Já conheço praticamente metade do mundo.

Faço voluntariado.

Vou ao ginásio.

Tenho uma família.

Tenho 1 cão e 1 gato.

Sou normal.

Sou feliz.

Sou amada e sei amar.

Respeitem e não desprezem os transexuais.

 

Obrigada Isabella!

Tenho um orgulho do caraças em ti!

Escolhi o cinzento para este “I’m Feeling”, porque eu sei que é a única cor que não vestes, desde o último dia que viste o teu pai e ele tinha vestido uma camisola de malha de cor cinzenta.

Deixo este vídeo que diz mais ou menos o que a Isabella quis dizer:

2 Replies to “I’m Feeling | Para mim sempre foste a Isabella”

  1. Por nós vivíamos em marte com pessoas corajosas e que sabem o que querem e lutam pela vida como a Isabella. Como tu. Mas honestamente (pedimos mesmo desculpa, por calcularmos que a Isabella há-de ler isto), custa-nos mesmo muito, muiiiiitoooo, mesmo, como se tudo fosse a nossa pele, viver num mundo tão retrogrado e mau como o pai dela. Podem dizer que são gerações. Podem falar em ignorância. Nós achamos que é falta de humanidade. Não conseguimos aceitar outra hipótese… Dá-nos uma revolta, que para continuar a escrever sem perdermos a razão ao usar vocabulário inadequado, preferimos acabar o comentário aqui.
    Mas fica uma salva de palmas de pé; fica um tirar os dois chapéus à Isabella. Ainda temos muito a aprender…

    1. Como sempre… concordo totalmente!
      Não se trata de geração, ignorância… trata-se de falta de amor.
      Sei de histórias passadas há mais anos com outros desfechos.
      Para mim, o problema não são as gerações, é isso que vocês disseram: a falta de humanidade.
      Obrigada!
      Beijinhos para vocês

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

Coisas FABULOSAS acontecem a quem subscreve esta newsletter!
Maria Amélia ícone
error: Conteúdo protegido!!
%d bloggers like this: