Testemunho | Pedro, o Ironman

Ontem voltei aos Hospitais da Universidade de Coimbra. Fui visitar alguém que não conhecia. Um grande amigo tinha alguém especial a lutar contra um cancro. Enchi-me de coragem e fui. Não é fácil manter a postura perante alguém que com 20 anos que está a lutar. Mas às vezes o mais fácil é sermos nós. Sorrir. E ser como somos. A empatia vem com naturalidade. Afinal de contas, um doente em recuperação às vezes só precisa de uma palavra amiga ou um sorriso para ter um dia melhor e olhar com outra esperança para o futuro.

Há 5 anos atrás estava eu do outro lado. Naquele dia de Fevereiro quando depois de um exame de rotina me disseram que tinha Polipose, talvez também tivesse precisado de uma palavra amiga. Não sei. Fui ao médico quase obrigado. O meu pai tinha tido cancro. Eu não tinha nada. Nenhum sintoma. Nenhuma alteração. “Vais e vais mesmo. Estás com a idade de fazer o rastreio”. Se não tinha nada e só lá fui porque me obrigaram porque razão tinham eles de ter razão? Se estão à espera que vos diga que fiz a obvia pergunta: “Porquê a mim?”. Desenganem-se. A minha primeira pergunta foi: “Ok, como é que isso se trata?”. Lembro-me de ir para casa, a conduzir, a tentar disfarçar o que me ia na alma. Não tinha verdadeiramente noção do que tinha. Do que me tinha acabado de acontecer e muito menos do que ia ser dali para a frente. Fui para casa pesquisar… Polipose Adenomatosa Familiar, Colectomia Total, complicações, percentagem de sobrevida… Quando mais lia menos percebia.

Nos dias seguintes fiz mais exames. Era preciso saber se a doença já tinha degenerado. Sempre evitei usar a palavra, mas era preciso saber se tinha cancro. Eu não usava a palavra. Ninguém a usava. Mas o medo estava lá.

Duas semanas depois fui operado. Entrei calmo, dormi tranquilo. E sim, posso dizer que por não ter simplesmente ideia do que me ia acontecer. Deitei-me na marquesa, em forma, com 33 anos. Acordei 5 horas e meia depois, sem cólon, com uma ileostomia, tubos enfiados por todo o lado. Sem me poder mexer. Lembro-me de acordar e ainda sem abrir os olhos, jogar a mão à barriga. O “saco” estava lá. Esta sim, era a palavra mais temida. Ia viver com um saco colado à barriga, todos os dias, 24 horas por dia. Isto sim é um murro muito grande na nossa auto-estima. E ninguém te explica concretamente o que vai ser aquilo. E como custa. Ninguém te consegue explicar o que é viver com um estoma e um saco. Só tu, quando o tens é que podes saber. Os outros só imaginam e nem sequer se aproximam do que é. Das horas, noites de sono que isso te tira e das marcas que deixa.

O pós-operatório foi a pior fase, da minha doença, da minha vida. Mas quiçá a que me deu mais forças para hoje ser como sou, com tudo o que isso tem de bom e mau. Passar um mês fechado, num quarto. Com tubos, sons de dispositivos médicos. Só sair para ir fazer exames ou mudar o penso da ferida que demora a cicatrizar. Ficar a suar só de pensar que vão fazer a limpeza profunda da ferida. Fechar os olhos só de pensar na dor. Dois meses a sentir e imaginar esta dor. Ainda hoje, a sinto, quando penso nisso. O tempo, não cura todas as feridas. Mas com algumas aprendemos a viver e ficar mais fortes se soubermos lidar com elas. Afinal de contas, os dias passam. Uns mais demorados que outros. Mas a cada dia que passa, estamos mais perto da saída.

Quando se sai do hospital ao fim de tanto tempo, percebemos uma coisa. Eu pelo menos, percebi isso. Quando entrei no serviço de cirurgia fiquei com a ideia que o tempo parou. Tudo ficou em suspenso. Mas não… As lojas continuaram a abrir, as crianças continuaram a ir para a escola, o mundo continuou a girar. Afinal, as coisas têm mesmo a importância que nós lhe damos. Mais uma vez, o tempo… Quando se sai, andamos ali uns dias a saborear a saída do hospital. Ir aos sítios que não íamos há meses. Ver pessoas, lugares. Estão lá todos. Tudo no mesmo sitio. Tudo igual. Tu é que mudaste. E é isso que choca. Olham para ti, com pena. Pena. Porque estás mais magro. Com um ar frágil. Já não és quem eras. Foste tu quem mudou.

Passei 6 meses de baixa depois de sair do hospital. Foi numa dessas tardes que surgiu o Ironman. Um triatlo de ultra distância. Mais que uma prova física. O verdadeiro teste à mente. Todos nós, precisamos de um objectivo. Uma causa. Alguém que nos foque lá à frente. Na saída de tudo aquilo que quase nos destruiu.

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409 dias depois do dia da primeira operação. A 3ª e última. O saco foi embora. Em troca devolveram a minha auto estima. A minha vida. Fui operado ao final da tarde. Sonhei muita vez com aquele momento. Imaginei-o. E quando finalmente acordei da anestesia, mais uma vez, sem abrir os olhos passei a mão pela barriga. Estava lisa. Estava lá um penso, no local onde antes, 409 longos dias tinha estado o “saco”. Pela primeira vez em muito tempo, suspirei fundo e descansei a cabeça. A minha vida estava de volta. Pelo menos, o possível. Mas estava vivo e isso era sem duvida o mais importante.

Ao inicio tinha pressa em fazer a ultima operação. Depois aos poucos fui tendo mais calma. Aprendi a viver com aquilo. Que remédio, estava ali, 24 horas por dia, quer eu quisesse ou não. Sem pausas, sem intervalos. Ao fim, voltei a ficar ansioso com a ideia da demora. Afinal de contas, faltava pouco para nascer a minha vida. É difícil descrever a montanha russa de emoções que atravessamos. De ter a vida destruída, surgiu a noticia que uma nova vida ia começar. Vinha aí a minha filha. Uma nova vida. Tudo o resto deixa de ter importância. Às vezes precisamos destas “pequenas” vitórias para nos lembrarmos que o melhor está no facto de estarmos vivos.

Passei os anos seguintes a lutar contra os meus demónios. Não é fácil ser-se equilibrado quando vivemos entre extremos. Ter-me concentrado numa prova, escrever sobre as cicatrizes da alma e viver com a minha família baseado no que é realmente importante fez com que aos poucos fosse ganhando tranquilidade. De postura perante os outros, dentro do que é possível e perante a vida.

O dia 2 de Outubro fez com que eu atingisse o epilogo desta história. Ter-me tornado a primeira pessoa no mundo a concluir um Ironman não fez com que eu, finalmente, pudesse deitar a cabeça e dormir descansado. Esse foi só o dia em que um ciclo se fechou. Ter encerrado todos os demónios que viviam na minha cabeça, isso sim. Fez com que o ciclo se fechasse. Não foi o melhor que já me aconteceu. O melhor está para vir. E este pensamento é o melhor que podemos ter. Nunca estar satisfeito. Agradecer o facto de estar vivo.

A doença, física, ultrapassa-se. As nodoas negras da alma custam mais a curar. Mas têm que ser saradas.

Ontem, quando falei com aquela pessoa, de 20 anos, a recuperar, mas plena da alma, a sorrir, lembrei-me e partilhei com ela o que era importante. A maior aprendizagem que eu tive foi a paciência. Aprendi a ter paciência. Tudo se faz. Tudo. Mesmo. Tudo se cura. O corpo e a alma. Mas é preciso ter paciência. As coisas demoram tempo. E mesmo perante a adversidade temos que ter atitude positiva. Perante nós. Perante os outros. Perante o tratamento. É preciso ir a mais uma sessão? Vamos embora! O enfermeiro entra no quarto para nos tratar? Bom dia, mais um dia, vamos lá! É a alma que nos cura.

Cada um de nós, que passou ou está a passar por isto, precisa de uma causa. Seja ela qual for. Lembrem-se:

Só nós sabemos. Só nós sabemos como contar a história. E muitas vezes, alguém que está a passar por algo menos bom, só precisa de uma palavra amiga, um sorriso.

Pensem nisso.

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12 Replies to “Testemunho | Pedro, o Ironman”

  1. WOW. É disto que precisamos sempre… de atitude e pensamento positivo.
    Obrigada Maria Amélia pela corrente positiva e ao Pedro por partilhar.

    1. Sempre pensamento e atitude positiva!

  2. É isto mesmo!
    Nem sempre conseguirmos dar a volta sozinhos e as vezes estás alavancas ajudam muito. Grande Pedro!

    1. É verdade, este testemunho é uma valente alavanca!

  3. As vezes so precisamos disto, de uma palavra de apoio. De motivação.
    Só gostam de partilhar histórias más e ninguém acredita que somos capazes.
    O PEdro conseguiu e hoje é um IronMan.
    E Maria Amélia peço-lhe que continue a combater esta corrente negativa que para aqui anda.

    1. Olá Teresa!
      Comecei esta corrente positiva com a história do Pedro, por ser uma história que me tocou muito.
      Eu depois de receber tantos emails de pessoas que se “queixam” que só lhes chegam histórias negativas com final infeliz, eu prometi que iria mostrar com histórias reais, que há muitas mas muitas histórias felizes.
      Eu prometi e vou cumprir!
      Não se deixe atingir por essas histórias negras, olhe o Pedro… caraças ele hoje é um Ironman… e está tudo dito! 🙂
      Vá passando por cá que vai encontrar mais histórias felizes. Aqui não há lugares para histórias negras!
      Um beijinho e muita força.

      1. Obrigada! Vou passar sim, como passo sempre.
        Tenho encontrado muita alegria nesta página, por isso, venho com muito gosto.
        Obrigada por ir continuar com mais histórias felizes, ficarei à espera.
        Um beijinho também para si.

        1. E sabe uma coisa Teresa?
          Qualquer dia é a sua história que está aqui escrita, porque eu acredito que é. Porque eu acredito em si e na sua determinação.
          Beijinho!

          1. Tão querida, fiquei emocionada…
            Muito grata por estar sempre desse lado e mesmo não nos conhecendo pessoalmente, tem me dado mais força que miitas pessoas que me rodeiam.
            Vou acreditar que sim, qualquer dia sou eu que escrevo aqui.
            Obrigada de coração. Beijinho

  4. Estes testemunhos são uma inspiração, assim como tu. Beijinhos no teu coração.

    1. Obrigada querida Sandra ❤️

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